Thursday 2 September 2010

002 - PÉS

Houve chuva e luz. Houve vento e um tênue beijo que me puxa para baixo. Os pés descalços tocam um chão mortal pela primeira vez. Sente a franca dureza fria do asfalto. Luz criada pelas mãos dos homens pendendo como prisioneiras em suas celas de vidro. Oh quão triste é esse tempo no qual as estrelas estão cruelmente costuradas no firmamento. Quão vazio é um mundo criado por concreto, o corpo sem vida dos sonhos.

Estou nu e pela primeira vez tenho consciência disso. Sinto nojo desse corpo frágil, fraco, pequeno e covarde. Ele corre, desorientado, tentando se proteger dos olhares reprovadores. Todos eles são fracos e frágeis como eu mas me observam como condores sobre a lebre ferida. Em outro lugar eu quebrantaria seus espíritos e os lançaria no esquecimento mas aqui somos todos miseravelmente iguais. Crias doentes esperando o fim de uma breve existência nos últimos dias de um fraco outono coberto pela sombra vigorosa do senhor do inverno.

Há uma fresta na sombra. Longe dos olhares. Descanso meu corpo encharcado de lagrimas e suor ali.
Minha consciência foge de mim. Meu grande conhecimento é agora fracionado e encerrado numa mente menor. Num mundo diminuto. Tudo é distante. O som da desordem humana mistura-se com o canto da chuva. Nada me resta se não me refugiar na terra dos sonhos...

 - Navras... - um nome antigo. Eu o conheço mas não o uso por tanto tempo. Navras e' um estranho. Um antigo inimigo. Um amigo esquecido.
- Quem me chama? – Respondo instintivamente. 
- Os protões se fecharam. Eles nos deixaram aqui.

Por um momento hesito. A voz é estranha mas o que ela fala soa terrivelmente familiar – Nós pedimos para ficar. É nossa missão alertar os mortais.

- E nos somos como eles agora. Somos miseráveis mortais agora. Quem virá nos alertar do perigo? Quem abrirá os portões?
- Ninguém, querido estranho. Apenas feche seus olhos e desperte...

    Ela é menor do que eu mas ergue-me e trouxe-me para sua casa. Uma pequena casa. Janela coberta por uma estofa imunda. Impedindo os raios do sol de iluminar a enorme quantidade de cabeças de boneca, garrafas plasticas, colares quebrados, velas usadas, correntes de bicicleta e todo tipo de lixo elétrico que cobrem as paredes. Vapor e som vindos de uma sala ao lado precedem o suave perfume de café.
    A porta se abre revelando o rosto coberto de rugas de uma frágil anciã. Ela trás duas xícaras fumegantes e imundas. Sorri, um sorriso sem dentes.

    - Com ou sem acucar?  

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